O futuro não é tão sombrio – Ignácio de Loyola Brandão – O Estado de S.Paulo, 02 de julho de 2010
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Treminhões imensos, repletos de cana metros acima do permitido, correm à nossa frente, as rodas da direita no acostamento de terra, enchendo nossos olhos de poeira vermelha. A estrada corta canaviais e sinto-me em labirintos dos quais nunca mais vou sair, para onde se olha é verde, verde. Aqui e ali, talhões de terra onde a cana já foi cortada e regados pelo restilo fedorento que ajuda a recuperar a terra para uma nova safra. Torres altíssimas servem às servidoras de celulares e você pode ver caboclões, de mãos calosas, dirigindo o trator e falando ao telefone móvel, como dizem em Portugal. Quem imagina o interior bucólico, desista. Quitandas, empórios, armazéns, cinemas, tudo cedeu lugar aos supermercados e shoppings. E igrejas das mais diferentes religiões. Mas neste novo interior há um processo que me interessa muito, o da revitalização das bibliotecas. Finalmente se está olhando para um dos momentos mais importantes na criação de leitores.
Começam a desaparecer as bibliotecas escuras, colocadas numa saleta no fundo das prefeituras, com acervos mínimos, em geral livros de carregação doados por caridosos locais, administrados por velhos
funcionários encostados à espera de aposentadoria. Entra aqui também a ação de bibliotecárias tenazes, resolutas, que com criatividade e zelo mudam tudo ao seu redor. Percorri centenas de quilômetros do interior paulista, conversando em cinco cidades, dentro do projeto Viagem Literária. Em Jaboticabal, o trabalho de Mônica Reino, do Departamento de Cultura, aliada à biblioteca, colocou 600 pessoas na plateia de um antigo cinema restaurado. A biblioteca da cidade, com 42 mil volumes, está instalada em um solar magnífico, conservadíssimo, espaçoso, iluminado, doação de uma fazendeira que adorava livros. Visitava a biblioteca e comentei com uma funcionária a calma. “De manhã é assim, mas à tarde é um fervo.” Maravilhoso, há décadas não ouvia o termo. Fervo = agitado, movimentado. Em Descalvado foi comovente, porque Maria Lúcia Izeppi, bibliotecária, e Rosinês Gabrieli, secretária de Cultura e Educação, lotaram o auditório, havia mais de 200 pessoas. Em seguida, ela mudou o velho ritual. Em lugar de um jantar para poucos, ofereceu ? e adorei ? um lanche junino, mesmo porque era época das
festas. Refrescos, quentão, cachorro-quente, pé de moleque, broas de milho, bolo de fubá, sanduíches e doces caseiros. O papo mudou do auditório para o meio dos livros. À entrada, fui recebido por Carlos Drummond de Andrade me dizendo versos sobre livros. Era um ator vestido a caráter. Na manhã seguinte, na saída do hotel, esperando o carro, conversava com uma senhora, quando ela viu uma pessoa se aproximar pé ante pé, atravessando a praça. Comentou: “Lá vem ela para ficar curiano. Vendo quem chega e quem vai.” Curiano, misto de curiosidade e olhando, já que no interior se elimina o “d”: andano, visitano, pesquisano, trabalhano. Não, a linguagem acariocada da Globo não matou certas coisas.
Localizar Cruz das Posses, distrito de Sertãozinho, foi um perereco, como se diz no interior. Perdidos nos canaviais, ansiávamos por uma plaquinha que nos garantisse não estarmos perdidos. Ao mesmo tempo,
adorava o sabor de aventura, não mais me reencontrar. A cidade se chamava Santa Cruz das Posses, depois abreviaram. O nome vem de um dos pioneiros, homem de muitas posses. Pequena biblioteca, mas Ana Lucia
Trovo, uma bibliotecária alucinada por livros, por fazer, promover, estimular crianças e adultos, criar feiras, eventos. Tudo debaixo dos olhos sonhadores da secretária de Educação e Cultura de Sertãozinho, Maria Dirma Francisco. No meio da tarde, ali estavam jovens, crianças, pessoas de meia-idade e meia dúzia de mulheres de 80 anos, que me ouviram, perguntaram, e saíram pouco antes porque “iam tomar parte em outra atividade”. Pensar que meus avôs, tios-avôs, velhas tias ficavam em casa, dormiam cedo e se enfastiavam na modorra no nada acontecer. Bolachas e biscoitos caseiros, quitutes saborosos enchiam as mesas.
Depois de Aguai, onde cem crianças se espalharam pelo chão e pelas mesinhas e de onde trouxe doces locais de banana, laranja, goiaba, leite, fui para Dobrada, vila de 5 mil habitantes, no tronco da antiga Araraquarense, e que já teve população de quase 20 mil. Dobrada foi um momento proustiano, era uma cidadezinha sempre citada pelo meu pai, meus tios, pertence ao imaginário deste Ignácio criança. Todos morreram sem dizer por que se falava tanto de Dobrada, ficou um enigma em minha vida. Ali me sentei com José Carlos Marcolino, contista,
cronista, historiador local, a me abastecer de histórias, e com Haroldo Galdini, do Departamento de Cultura. Num bar chamado Pocahontas (e por que uma índia americana naquele interiorzão?), mas que todos conhecem como Prego, pedi um sanduíche chamado calabrezinha e recebi num prato um lanche enorme, que poderia ser dividido por três. A fartura e a generosidade interiorana. Emoção foi ser recebido com uma orquestra infantil, a Corporação Musical Maestro Pedro Donda, que tocou o Hino Nacional.
Eram 10 da noite quando deixei Dobrada rumo a Ribeirão Preto. Lua enorme no céu, estrada vazia. Na tarde do dia seguinte, corri para o Teatro Dom Pedro II e, assim que Zuenir Ventura e Ricardo Kotscho terminaram uma discussão sobre imprensa, conversa divertida, informativa, demolidora, subi ao palco. Zuenir me abraçou, feliz:
“Acabo de percorrer 700 quilômetros e estive em cidades que não conhecia, como Suzano, Arujá, Campo Limpo Paulista, Valinhos, Várzea Paulista e São Francisco Xavier. Nunca vi coisa igual a essa no Brasil.” Quanto a mim, disse, é o terceiro ano que faço a Viagem Literária, que envolve 350 eventos em 70 cidades, numa organização da
Secretaria de Estado da Cultura. Zuenir escreveria em O Globo, dias depois: “Coisas de São Paulo, que às vezes parece outro país. Não sei se existe em algum outro Estado um programa como este que há três anos leva escritores a bibliotecas públicas do interior para bate-papos, palestras e oficinas de criação.” Curioso, porque muitos dos escritores que fizeram a Viagem naquela semana acabaram se encontrando na 10.ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, um ponto de convergência. Estava saindo do hotel e dei com Daniel Galera. Estava
no Pinguim tomando chope escuro com Menalton Braf, um belo companheiro de palco, quando soube que naquela tarde falariam Carlos Herculano Lopes, Luiz Ruffato e Nelson de Oliveira. Um rodízio das letras. Escritores de todas as gerações, de Carlos Heitor Cony a Adriana Lisboa estão nessa, pé na estrada. O futuro não é tão sombrio.