Herbert Moraes
De Tel Aviv, Israel
O livro “A Bibliotecária de Auschwitz”, do escritor espanhol Antonio Iturbe, é best seller na Europa, notadamente na Espanha e na Alemanha. Trata-se de um romance baseado numa história real. Dita Kraus, uma adolescente de 14 anos, foi enviada com os pais do gueto de Terezin para o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Ficou no campo de 1944 a 1945, quando foi enviada para a Alemanha, que desistiu de matá-las (Dita e sua mãe), e a outros judeus, porque precisava de mão de obra escrava. O pai morreu em Auschwitz, ao lado de Treblinka, um dos campos mais letais do regime nazista de Adolf Hitler, Heinrich Himmler, Göring e, entre outros, Adolf Eichmann. Num pavilhão do campo (o bloco 31), os judeus formaram uma biblioteca de poucos livros — Iturbe menciona oito, mas eram um pouco mais — e Dita Kraus foi escolhida para ser sua guardiã. Quase 70 anos depois, a sobrevivente Dita Kraus, de 84 anos, mora em Israel. Ela é viúva do escritor Otto Kraus, autor de “The Painted Wall” (“A Parede Pintada”), livro que discute Auschwitz (mais ou menos na linhagem de “É Isto um Homem?”, do escritor italiano Primo Levi, também prisioneiro e sobrevivente de Auschwitz). No campo, ao lado do mestre e instrutor Freddy Hirsch, Otto Kraus entretinha e instruía os meninos, numa espécie de escola volante. Com o fim da guerra, Dita e Otto Kraus foram para Praga e lá ficaram até 1949. Dado o autoritarismo do regime comunista, decidiram seguir para Israel. Dita Kraus nasceu em Praga, na Tchecoslováquia, e visita a República Tcheca todos os anos. Ela fala tcheco.
Quando li a notícia da publicação do livro, e informado de que Dita Kraus morava em Israel, decidi procurá-la. Encontrá-la não foi difícil. O nome da bibliotecária de Auschwitz está na lista de sobreviventes do Holocausto do Yad Vashem (Museu do Holocausto), em Jerusalém. Complicado mesmo foi convencê-la a conceder uma entrevista. Dita Kraus não é reclusa, mas é reservada. Acha que já contou o que tinha para revelar. Quando cheguei à sua casa, ela, num primeiro instante, demonstrou frieza e distanciamento. Mas aos poucos, quando começamos a falar de literatura e do marido que já morreu, foi se soltando. No final da entrevista, estávamos os dois sentados no chão, enquanto ela me mostrava fotos e documentos de Auschwitz.
Não foi a primeira vez que entrevistei um sobrevivente do Holocausto. Como moro em Israel há oito anos, todos os anos entrevisto alguns deles. Segundo o governo de Israel, como estão com idade avançada, pelo menos mil sobreviventes morrem a cada mês (há cerca de 250 mil sobreviventes). É uma corrida contra o tempo se um jornalista ou estudioso estiver interessado em interagir com essas pessoas. Mas a entrevista com Dita Kraus foi especial. Por ter sido professora, e ainda estar com a memória ótima, conversar com ela é como entrar num túnel do tempo. Dita Kraus consegue levar, quem escuta suas histórias, de volta aos horrores que viveu e sobreviveu, e que a deixaram marcada pra sempre.
Dita, viúva, mora sozinha no mesmo apartamento onde viveu com o marido, em Netanya, uma cidade costeira de Israel, onde judeus russos e franceses são mais da metade da população. Apesar da idade avançada, é bem ativa. Enquanto me mostrava as várias estantes lotadas de livros variados e documentos, a sobrevivente do Holocausto me surpreendeu pela energia e memória. Na prateleira, bem perto da porta de entrada onde o sobrenome da família está gravado numa placa, estava o livro que conta um pouco da história dela. Dita Krauss diz que sua biblioteca tem literaturas alemã, francesa, tcheca e israelense. “Aqui estão os livros sobre o Holocausto. Tenho dezenas, em várias línguas, principalmente em inglês. Adoro os autores ingleses, até porque fui professora de inglês”, diz. Ela mostra outro livro, “The Painted Wall”, de autoria do marido. “A história contada aqui inspirou o autor do livro sobre o qual vamos conversar. É sobre o mesmo tópico.”
Com sua elegância discreta, Dita Kraus mostra o livro que ganhou do escritor espanhol Antonio Iturbe, com a dedicatória que ele fez para ela. “Fui até Barcelona para o lançamento. Nós nos tornamos amigos. Nos encontramos primeiramente em Praga”, afirma. Pergunto se ainda fala tcheco. “Sim, é minha língua materna. Com o fim do comunismo, voltei a visitar com frequência a minha terra natal. Quando ainda era controlada pelos comunistas, os israelenses não podiam visitar a Tchecoslo-váquia (atuais República Tcheca e Eslováquia). Por isso durante 40 anos não fui ao meu país. Quando voltei, foi uma surpresa” (risos).
Depois de uma conversa inicial, mais uma troca de impressões, eu e Dita Kraus nos sentamos para a entrevista. Ao final, ela disse que há muito tempo não tocava em certos assuntos, mas que, durante a nossa conversa, se sentiu a vontade para voltar ao passado, sem “cinto de segurança”.
Aos que perguntam se Dita Kraus se sente culpada por ter sobrevivido, enquanto seu pai e cerca de 6 milhões de judeus foram assassinados pela máquina de matar criada por Hitler, Göring e Himmler, ela sempre responde, de maneira enfática, que não se sente, em nenhum momento, culpada por ter escapado das garras dos nazistas. Sente alguma culpa pela morte da mãe, mas ela não podia fazer praticamente nada para salvá-la. A mãe morreu de tifo. Assegura que não odeia nem quer vingar-se dos alemães. Entretanto, nas férias, não frequenta nem a Alemanha nem a Áustria.
A pele de Dita Kraus ainda guarda o número 73.305 — tatuado pelos nazistas. Ela fez questão de mostrar o braço no qual está inscrita a marca infame.
A perda de sua filha representa para a resistente e serena Dita Kraus algo igual ou pior do que o Holocausto.
“A Bibliotecária de Auschwitz” ainda não tem edição no Brasil.
Como foi o contato com o jornalista e escritor Antonio Iturbe, autor de “A Bibliotecária de Auschwitz”, livro romanceado sobre sua vida no campo de extermínio?
O primeiro contato com o autor aconteceu via e-mail. O escritor fala um inglês básico. A forma como me questionava tornou possível a nossa comunicação — o que me deixou particularmente encantada. Nos encontramos duas vezes em Praga, capital da República Tcheca, onde nasci. Na época, Iturbe me disse que queria escrever um livro e começou a me perguntar detalhes daquele tempo. Meses depois, ele enviou a notícia de que o livro seria publicado em Barcelona e me convidou para o lançamento. Eu fui. Mas ainda não pude ler, pois a obra não foi traduzida [saiu na Espanha, na Alemanha e será publicada na República Tcheca]. Folheei algumas páginas e vi meu nome várias vezes, além de nomes familiares, como o de Freddy Hirsch [nascido em 1916 e assassinado em 1944, aos 28 anos, no campo de Auschwitz, Polônia. Ele foi o idealizador da biblioteca da qual Dita Kraus tomava conta]. As informações que repassei a Iturbe foram publicadas no livro. Ele também leu a obra de meu marido [o escritor Otto Kraus] e esteve em Auschwitz. Nossas conversas indicam que o escritor sabe muito sobre o assunto.
A sra. diz que ainda lê e fala em tcheco. Como foi a primeira vez que voltou a Praga depois de tantos anos? Quais foram as suas impressões?
[Antes de responder, Dita Kraus abre um sorriso. Ao falar, prefere a primeira pessoa do plural, sempre colocando-se ao lado do marido, o falecido escritor Otto Kraus.] Nossa primeira impressão foi muito engraçada e emocionante. Otto e eu fomos até a principal ponte da cidade e olhamos para o castelo e para a catedral, que são monumentos famosos de Praga. E dissemos ao mesmo tempo um para o outro: “Olhe, ainda existe. O castelo não foi destruído, e o rio ainda corre no mesmo lugar, e também está aqui!” Nunca me esqueço disso. A língua não era problema, já que eu nunca parei de falar tcheco com meu marido. Toda nossa vida nos comunicamos em tcheco. Mas os nossos filhos não aprenderam. A outra impressão que eu tive foi em relação à deterioração dos prédios da cidade. Todos descascados, velhos. Era puro concreto, caixas de concreto. Praga estava horrível. Mas, com a retomada da democracia, tudo melhorou. Praga é hoje uma cidade deslumbrante.
O que as crianças diziam dos livros que a sra. cuidava quando estava em Auschwitz? Eram mesmo oito livros? Tinha Freud (“Novos Caminhos da Terapia Psicanalítica”), H. G. Wells (“História do Mundo”), um Atlas, uma gramática russa, uma novela russa (o livro não tinha capa) e mais dois livros, como relata o autor de “A Bibliotecária de Auschwitz”? Não eram livros chatos para as crianças? Elas tiveram tempo de ler todos ou pelo menos um desses livros?
Eu quero responder isso voltando no tempo, antes da sua questão. Os livros chegaram ao Pavilhão das Crianças por intermédio de prisioneiros poloneses que separavam os objetos das malas dos judeus que embarcavam os que eram levados para as câmaras de gás. Eles separavam os objetos de acordo com a sua função. Na rampa de embarque, depois que o trem saía, ficavam as malas vazias, e pilhas de roupas, comida, sapatos, óculos. Como o pavilhão no qual eu ficava estava bem na entrada de Auschwitz, assistia a cena todos os dias. Quando eles achavam um livro traziam para nosso pavilhão. Não havia livros infantis. Eram temas modernos. A biblioteca era formada por 12 ou 14 obras. Não me lembro dos títulos. E não pude revelá-los a Antonio Iturbe, autor de “A Bibliotecária de Auschwitz”. Lembro-me, com certeza, somente de “A História do Mundo” [publicado no Brasil como “Uma Breve História do Mundo”, Editora L&PM], de H. G. Wells. Os outros citados saíram da imaginação de Antonio Iturbe. Foram escolhas dele. Não é um fato documentado. As crianças não liam os livros. Eu me lembro de um Atlas. As crianças olhavam as figuras, os mapas aleatoriamente. Mas eram usados de forma lúdica, até mesmo para jogos de palavras. Jogo do ABC. Os livros, embora interessantes, não foram escritos para crianças. Mas adultos repetiam várias vezes certos capítulos de alguns desses livros. Isto ocorria diversas vezes ao dia. Chamávamos de livros andantes. Eram as melhores histórias, porque se misturavam com a imaginação das crianças que estavam ali.
A sra. voltou a Auschwitz?
O campo já não existe mais. Eles destruíram tudo. O que hoje os turistas veem em Auschwitz não é nem um terço do que foi aquele inferno. Só sobraram as chaminés dos pavilhões. Nunca fui até lá. E não vou. Não quero ir até lá. [Dita Kraus fica com o rosto crispado. Se a voz silencia-se, o corpo protesta.]
Fale das crianças. Eram mesmo 500?
Muito mais. Era muito cheio. Era o único pavilhão que não tinha bancos ou beliches. Tudo vazio. Um grande espaço. Eu fiz um desenho que dá uma ideia de como era. Posso lhe mostrar depois. Não havia espaço suficiente para tantas crianças. Todos se sentavam no chão ou ficavam em pé. Com exceção da chaminé do aquecedor e alguns livros não havia mais nada. Nenhum brinquedo — nem um quadro-negro para os adultos ensinarem. Nada.
Então o que faziam lá?
Havia algum tipo de educação. Aprendizado. Os adultos ensinavam sem livros, canetas, cadernos e lápis. Tudo era feito oralmente, e de uma forma muito secreta. Afinal, ensinar e aprender eram proibidos. Havia um controle. Quando os inspetores chegavam, as crianças fingiam que estavam participando de um jogo de adivinhar, é claro, já que não havia espaço para correr.
A sra. se lembra de alguma criança em especial?
Eram tantas crianças… Lembro-me de muitas que tinham a minha idade [14 anos]. Nós fomos para lá juntas. O pavilhão só funcionava durante o dia. Nós dormíamos com os adultos. As meninas com as mães e os meninos com os pais. Somente de dia nós seguíamos para o pavilhão das crianças.
Como a sra. se tornou responsável pelos livros?
[Antes de responder, Dita Kraus abre um sorriso] Ah! [suspira] Foi Freddy Hirsch, que era o que podemos chamar de “gerente” ou “diretor” do pavilhão. A SS permitiu que crianças de até 14 anos ficassem ali. A partir dessa idade, tinham de trabalhar. Ele [Freddy] conseguiu autorizações para dar “empregos” para as crianças entre 14 e 16 anos que ainda estavam no pavilhão e seriam encaminhadas para o trabalho forçado. Nossa função era cuidar das crianças menores. Eu, como uma dessas ajudantes, fiquei responsável pelos livros. Essa era a minha função. Outros tinham que varrer, porque não havia assoalho. A poeira era grande e a fumaça e as cinzas que vinham dos crematórios eram constantes. Por isso o pavilhão era frequentemente varrido. Outros ajudavam na distribuição da sopa. Uma vez por dia eles serviam sopa. Éramos chamados de “os serviçais”.
A sra. era encarregada, então, de repassar os livros?
Eu fazia o que era determinado. Não era um trabalho pesado. Eu ficava sentada com alguns livros ao meu lado. Os adultos vinham, olhavam os livros e os retiravam. Eu tinha de lembrar para quem o livro tinha sido entregue, já que não podia anotar. Era proibido escrever.
Algum dos prisioneiros judeus chegou a ler todos os livros?
Eu não sei. Talvez [Dita Kraus faz uma pausa e fica com o olhar estático, como se estivesse buscando no fundo do ser informações precisas de um tempo já longínquo e, ao mesmo tempo, doloroso. Mas firmemente incrustado em sua memória].
O que a sra. se lembra do tempo em que esteve em Auschwitz?
De coisas bem tristes. Trágicas. O pior momento foi a morte do meu pai. Nós chegamos em dezembro, e meu pai morreu em fevereiro. Quando chegamos, já estávamos há um ano vivendo num gueto. Estávamos famintos. Auschwitz era a personificação da fome. Uma fome que não pode ser descrita. Era tão forte que não nos deixava pensar em outra coisa, exceto em comida. Meu marido uma vez escreveu “ … a fome tomava conta de todo o nosso corpo”. Meu pai foi ficando magro. Em poucas semanas estava raquítico e muito fraco. Um dia ele não conseguiu se levantar. Todos tinham que sair do pavilhão, todas as manhãs e noites, para a contagem. Meu pai não pôde se levantar e se apresentar. No outro dia ele estava morto. [Ao falar sobre o pai, Dita Kraus, de repente, silencia-se. Parece ausente, mas está apenas rememorando o tempo perdido, recuperando-o cerebralmente, para contar o que aconteceu.] Os mortos eram empilhados atrás dos pavilhões próximos às cercas de arame farpado. Ao fim de cada dia alguém passava para recolhê-los. E todos os dias havia uma pilha deles atrás de cada pavilhão. Era um lugar horrível. Auschwitz era um lugar horrível. A vida ali não tinha nenhum valor, e nenhum sentido.
O assassinato era cometido de modo indiscriminado em Auschwitz?
Em março, metade da população do nosso pavilhão foi levada em vários caminhões. Três mil e 700 pessoas num só dia. Crianças e bebês entre eles. Todos foram levados para as câmaras de gás. Naquele dia nós sabíamos que o nosso destino seria o mesmo. Em junho seria a nossa vez. Os adultos então decidiram tornar mais tranquilos aqueles últimos três meses. Eles queriam que as crianças aproveitassem um pouco mais da vida. Eles passaram por cima do próprio medo e se dedicaram às crianças. Brincando e ensinando como se nada estivesse para acontecer. Como se as câmaras de gás não existissem.
A morte “rondava” todos os dias. Como as crianças lidavam com esse horror?
Criança é criança. Elas ficavam brincando, mesmo com fome [silêncio]. Nós não falávamos sobre isso [morte]. Eu não me lembro de ter discutido o nosso medo. Nós o contínhamos para que ele não se agravasse.
Como a sra. sobreviveu?
A nossa sorte foi que os alemães decidiram, em maio de 1944, um mês antes da data para o nosso extermínio, que era um desperdício de energia humana matar tanta gente nas câmaras de gás. Então eles disseram: “Vamos matá-los de tanto trabalhar. Deixem que morram trabalhando para nós”. As ordens chegaram em Auschwitz, e com elas o dr. [Joseph] Mengele [morreu afogado em Bertioga, São Paulo, em fevereiro de 1979]. Foi este médico quem fez a seleção dos que estavam aptos ao trabalho. Durante alguns dias ele examinou as pessoas que estavam no pavilhão das famílias. Em dias separados para homens e mulheres. Nós tínhamos que marchar diante dele. Ele apontava o dedo para aqueles que achava que estavam saudáveis. E assim, eu e minha mãe fomos selecionadas para trabalhar na Alemanha, num campo de trabalho forçado. Então, em vez da câmara de gás, nós embarcamos num trem para a Alemanha. Lá nós trabalhamos duro nos dez meses seguintes. E isso não foi o fim. Ainda fomos levadas para outro campo. Eram vários. Esse para o qual me mandaram é conhecido como Bergen-Belsen. Foi o pior de todos. [O campo de concentração de Bergen-Belsen, mais citado como Belsen, situava-se na Alemanha. A partir de abril de 1943, passou a ser controlado pela SS. Lá, como não era um campo de extermínio, não havia câmaras de gás, porém milhares de judeus, ciganos e homossexuais morreram de fome ou sob tortura.]
Quando e por quem foram libertadas?
Por sorte, poucos dias depois de chegarmos em Bergen-Belsen, os britânicos apareceram e nos libertaram. Mas fomos obrigados a permanecer no campo, de quarentena, porque havia uma epidemia de tifo. Ninguém podia ir pra casa. Isso ainda durou algumas semanas. Dois meses antes do fim da guerra, minha mãe ficou doente e morreu em dois dias de febre tifoide. [Silêncio, olhar parado.] Me lembro dela [Dita Kraus mantém o olhar distante, como se não houvesse um interlocutor à sua frente]. Ela morreu depois de passar por tudo isso junto comigo. E só tinha 42 anos. Meu pai tinha 44 quando faleceu.
E o que aconteceu com você depois da morte de sua mãe?
Alguns amigos possibilitaram que eu embarcasse num ônibus para Praga. Quando cheguei lá, lembrei-me que tinha uma prima do meu pai, que não era judia, mas era uma pessoa muito próxima da família. Uma pessoa boa, que me acolheu. Ela foi muito delicada. Me aceitou e me protegeu por duas semanas, até que eu consegui encontrar meu caminho. Eu tinha 16 anos.
Outras memórias ainda mexem com a sra.?
Eu me lembro que um dos professores do pavilhão das crianças fazia com que todos cantassem uma certa canção que de alguma forma provocava uma sensação de felicidade entre elas. O nome da música é “Aloutte”. É em francês. Conta a história de um pássaro, e cada palavra que se dizia acrescentava-se outra, e as crianças adoravam isso. Era um momento diferente. Nos sentíamos vivos. Mesmo assim é tudo muito triste. Tenho lembranças de acontecimentos muito tristes. Eu tinha uma parente distante, que eu não conhecia, mas minha mãe sim. Ela ficava no mesmo pavilhão que a gente dormia. Ela roubava as pessoas. Nós não roubávamos, éramos honestos e amigos uns dos outros. Com os estranhos também. Eu tinha vergonha por ela, porque os roubos aconteciam dentro do pavilhão, à noite. E ela roubava de pessoas que não tinham nada. Os nossos sapatos eram colocados debaixo da cabeça na hora de dormir justamente para não serem roubados. Alguns tinham colheres que colocavam na cintura quando se deitavam. Outros tinham agulhas para costurar a roupa que nunca era trocada e nem lavada. Nós ficávamos com os mesmos trajes dia e noite. Tínhamos um pedaço de sabonete. Sujo. Horrível, era cheio de areia. E essa minha parente roubou essas coisas. Eu fiquei muito envergonhada por ela, que morreu na câmara de gás na primeira leva, em março.
Como conheceu o seu marido, Otto Kraus? Foi mesmo em Auschwitz?
Meu marido era um dos “professores” do pavilhão das crianças. O grupo que ele ensinava ficava próximo de onde eu estava sentada com os livros. Durante todo o dia eu o via e ouvia o que ele dizia às crianças. Eu o conhecia a distância e sabia como era sua voz. Achava que ali nem havia me notado, mas nos encontramos depois da guerra. Eu estava na fila de um ponto de ônibus em Praga e ele estava lá também. Eu sorri porque o reconheci, e pensava que ele não se lembraria de mim. Mas ele lembrou, e disse que sabia quem eu era. “Você é a menina de pernas finas que cuidava dos livros em Auschwitz”. Pernas finas! [Risos] Ele sabia quem eu era [agora, Dita Kraus sorri]. Nós nos casamos dois anos depois em Praga.
O autor do livro “A Bibliotecária de Auschwitz” (inédito em português, faz sucesso na Espanha, na Alemanha e agora está saindo na República Tcheca), o espanhol Antonio G. Iturbe, afirma que a sra. não gosta de ser chamada de heroína. Por que não?
A obra, até onde sei, exagera a minha coragem. Eu não era tão corajosa como o livro conta. [O livro romanceia a história. O autor afiança que não conseguiu dados suficientes para relatá-la, daí o recurso à imaginação. O que tornou a história mais compreensível e emocionante.]
O dr. Mengele chegou a fazer algum tipo de exame na sra. ou nas crianças do pavilhão?
Não era um exame propriamente dito. Ele nos olhava e apontava o dedo para os que achava que estavam saudáveis [para o trabalho]. Nós ficávamos de pé, em frente a ele. Dizíamos o nosso número [Dita Kraus levanta a manga da camisa para mostrar o número tatuado). Este é meu número: 73.305 [neste momento, Dita Kraus aumenta o tom da voz e diz em alemão o número que está em seu braço como se estivesse, mais uma vez, reportando-se a Mengele. É uma “volta” a Auschwitz]. Nós tínhamos que dizer nosso número bem alto, em alemão. O número, a idade e a profissão. Podíamos falar apenas essas três coisas. Eu menti a minha idade pra poder passar no teste [Dita Kraus tinha 14 anos, mas disse que era mais velha]. Minha mãe também.
O tratamento dos nazistas com os judeus era o mesmo para todos ou havia diferenciação?
Com exceção de Freddy Hirsch [espécie de gerente do pavilhão], todos nós éramos tratados de maneira desumana. Com Hirsch havia um tratamento de respeito. Ele era tratado como um ser humano. Nós éramos apenas um subpovo. Sub — nada além disso.
Quais observações pode fazer sobre o livro “A Bibliotecária de Auschwitz”?
Eu tenho minhas reservas em relação à obra. Primeiramente, porque me qualifica como heroína. E, depois, porque o autor não conheceu os meus pais, mas, mesmo assim, faz uma descrição como se os conhecesse bem. Os pais descritos no romance histórico são bem diferentes dos meus pais verdadeiros. Não posso aceitar isso. [Risos fortes] Eu ouvi de amigos que é um bom livro. Muito bem escrito. Daqueles que não se consegue parar de ler. Deve ser muito bom, mas eu não posso avaliá-lo porque não o li. [Numa entrevista a um jornal espanhol, o autor diz que torce para ela o leia e revela que o livro havia sido traduzido para o tcheco, a língua original de Dita Kraus.]
A sra. chegou a assistir o julgamento de Adolf Eichmann — o nazista que enviava os judeus para os campos de concentração e extermínio — em Jerusalém, no início da década de 1960?
Não assisti porque naquela época não tinha televisão. Mas ele foi transmitido pelo rádio. Lembro-me que nos sentávamos e ouvíamos o tempo todo. Por várias semanas. A justiça foi feita. Um criminoso como ele tinha de pagar pelo que fez. [Eichmann foi julgado e enforcado. A filósofa judia alemã Hannah Arendt escreveu um livro a respeito, “Eichmann em Jerusalém — Um Relato Sobre a Banalidade do Mal”.]
A sra. recebeu alguma indenização do governo da Alemanha?
Sim. Eles pagam o meu aluguel. E isto ajuda, senão não poderia morar aqui.
Considera-se uma pessoa de sorte por ter sobrevivido ao Holocausto?
Eu sobrevivi, mas fiquei traumatizada e marcada para sempre. Todos que foram para Auschwitz e saíram de lá ficaram com alguma marca, um trauma. No coração, na alma, no sorriso. Alguns ficaram com marcas físicas também. Quando eu saí, meu corpo estava bom, mas a minha alma até hoje está marcada. Por muitos anos, sonhei com a minha mãe [de novo, o olhar fica perdido, distante, como se o cérebro de Dita Kraus estivesse fixando-se em algum momento feliz ao lado de sua mãe]. Nos meus sonhos ela está viva. E eu tinha várias versões do mesmo sonho. De que ela estava viva. Sempre viva. Me sinto culpada pela morte dela. Eu deveria ter feito mais. Encontrar um médico, algo ou alguém que pudesse ajudar quando ela morreu. E isso me persegue.
A sra. mantém contato com pessoas que conheceu em Auschwitz?
Sim, sim. Mais que contato. Nós somos como uma família. Os que estiveram nos mesmos campos que eu têm um tipo de conexão estreita. Como irmãos. Família mesmo. Alguns ainda estão vivos. Estamos desaparecendo. A cada hora alguém vai embora. Mas mantemos contato. Até mesmo com os que vivem em outros países. Uma vez por ano nos encontramos. Este ano éramos apenas cinco. Há 30 anos éramos mais de 200 [risos]. Mas ainda há outros vivos, que ainda não se foram. Como eu.
A sra. acredita que o Holocausto possa acontecer de novo?
O Holocausto propriamente dito não. Só teve um. E esse evento matou milhões de pessoas sem motivos, entre eles os judeus. A morte num ritmo industrial. Um fato que nenhuma outra tragédia — seja de ocupação, aniquilação — conseguiu superar. Não podemos nem mesmo comparar ao que os turcos fizeram com os armênios, que foi uma tragédia horrível também. O Holocausto foi um fenômeno tão único que não acredito que possa acontecer de novo. Eu ainda me pergunto como eles puderam fazer isso. Aquilo foi horrível. Não acredito que possa haver novas câmaras de gás. Eu não sei se você já ouviu falar dos prisioneiros chamados de sondercomando? Essas eram as pessoas, os prisioneiros judeus, que trabalhavam nas câmaras de gás para os nazistas. Eles eram os responsáveis por retirar os dentes de ouro e os cabelos (para perucas) dos cadáveres antes de serem levados para o crematório. Era um trabalho horrível. Um deles sobreviveu e contou o que acontecia lá dentro. [De novo, silêncio.] Eu acho que todos deveriam ler esse relato. É tão horrível que, quando penso nisso, eu perco o fôlego [agora, pela primeira vez durante a entrevista, percebe-se lágrimas nos olhos de Dita Kraus, uma mulher extremamente composta e serena — que, se não odeia, também não esquece. Vive para denunciar a iniquidade nazista]. É inimaginável. As pessoas eram levadas para esse lugar que parecia um vestiário. Um grande banheiro. E sufocavam por 20 minutos ou mais. Muitas mulheres foram mortas com suas crianças ou com seus bebês ao peito. Preciso dizer mais? [Não precisava, pois o nazismo, com seus campos de extermínio, como Auschwitz, Treblinka e Sobibor, é a face do absurdo moderno, do inominável. Tanto que levou o filósofo Theodor Adorno a dizer que, depois de Auschwitz, não havia mais espaço para a poesia.]
Entrevista | Avraham Milgram
Para conhecer um pouco mais da história de Dita Kraus, sobrevivente de Auschwitz, o Jornal Opção foi até o museu do Holocausto em Jerusalém, ou Yad Vashem. Lá há uma ala que conta a história das crianças de Auschwitz. A foto de Dita Kraus está exposta como uma das principais personagens desse episódio. O historiador brasileiro-israelense Avraham Milgram é um dos diretores do museu e profundo conhecedor do Holocausto.