Haroldo Ceravolo | São Paulo – 23/01/2017 – 15h34
‘A biblioteca pública é fundamental nos tempos de crise’, avalia Elisa Machado, que já atuou no sistema de bibliotecas de São Paulo; para ela, proposta da gestão Dória não é de parceria, mas de terceirização
Nos primeiros dias da gestão de João Dória (PSDB) na Prefeitura de São Paulo, o novo secretário de Cultura paulistano, André Sturm, anunciou a intenção de ampliar a participação de entidades privadas na administração de serviços públicos do setor. Sturm declarou que pretende deixar o Centro Cultural São Paulo e as 54 bibliotecas públicas municipais sob a gerência de OSs (Organizações Sociais).
“OS é uma ideia incrível que já está implementada no estado. Queremos ter o melhor do Estado, que são as políticas, com o melhor do privado, que é a gestão”, afirmou Sturm, ainda no dia 5 de janeiro*.
Organizações sociais são qualificações concedidas pela Administração Pública para entidades privadas, sem fins lucrativos, para que estas possam receber recursos e benefícios, como isenções fiscais, para a prestação de serviços de responsabilidade de Poder Público.
Para Elisa Machado, professora do Departamento de Estudos Biblioteconômicos da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), a proposta que a gestão de Dória quer vender como uma parceria é, na realidade, a tentativa de terceirização do sistema de bibliotecas municipais de São Paulo, o maior da América Latina.
Foto: Reprodução/ Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de São Paulo
Elisa Machado durante o 7º Seminário Biblioteca Viva, em São Paulo, em novembro de 2014
“A proposta da nova gestão da cidade de São Paulo não é de estabelecimento de uma parceria, mas sim de um contrato de repasse da gestão das bibliotecas pública para as mãos de uma empresa privada. É a terceirização sendo imposta à população. Considero que essa proposta é um equivoco, e é parte do plano que vem sendo implementado pelos governos de direita de desmonte do serviço público, e impactará de maneira negativa no direito da população ao acesso à informação, à leitura e ao conhecimento”, afirma a especialista, líder do Grupo de Pesquisa “Bibliotecas Públicas no Brasil: reflexão e prática” e ex-coordenadora nacional do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas.
Doutora em Ciência da Informação pela USP (Universidade de São Paulo), Elisa Machado, que também foi diretora do Departamento de Bibliotecas Públicas da Cidade de São Paulo, concedeu entrevista exclusiva para o Painel Acadêmico sobre os planos de Dória para o setor. Coordenadora geral do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas da Fundação Biblioteca Nacional entre os de 2011 e 2014, ela falou sobre experiências internacionais na organização de bibliotecas públicas e comentou os problemas enfrentados pelas bibliotecas-parque no Rio de Janeiro.
-
Profissão de técnico em biblioteconomia pode ser regulamentada
-
Após criticar Dória, Charles Cosac assume Biblioteca Mário de Andrade
No final do ano passado, as bibliotecas-parque do Rio, que pertencem ao estado e eram administradas por uma OS, foram obrigadas a fechar as portas depois que o contrato entre o Poder Público e a entidade foi encerrado.
Confira abaixo a entrevista completa com Elisa Machado:
Painel Acadêmico – Uma das primeiras ações da nova gestão na área de cultura foi anunciar “parcerias” para gerir as bibliotecas públicas de São Paulo. Você trabalhou no sistema. Como vê essa possibilidade?
Elisa Machado: estabelecer parcerias entre o poder público e o privado é legítimo e em certos casos bem-vindo. Há de se fazer parcerias que estabeleçam relações de qualidade entre instituições e pessoas que atuam em diferentes espaços e que têm princípios e objetivos em comum. Nesse sentido, é importante ter claro que o conceito de parceria remete para a ideia de complementaridade e não de dependência. No entanto, o Brasil é um país muito permissível em relação a esse tipo de relação, favorecendo a retirada do Estado dos processos de regulação. Quem falava isso era Milton Santos, há mais de 20 anos, alertando para o perigo do mercado comandar a vida social do país, por meio do terceiro setor. A proposta da nova gestão da cidade de São Paulo não é de estabelecimento de uma parceria, mas sim de um contrato de repasse da gestão das bibliotecas pública para as mãos de uma empresa privada. É a terceirização sendo imposta à população. Considero que essa proposta é um equivoco, e é parte do plano que vem sendo implementado pelos governos de direita de desmonte do serviço público, e impactará de maneira negativa no direito da população ao acesso à informação, à leitura e ao conhecimento.
Painel Acadêmico – O modelo sugerido é semelhante, pelo menos pelo que se compreende do que fala o novo secretário, ao das Fábricas de Cultura, em São Paulo, e das bibliotecas-parque do Rio de Janeiro, que agora estão fechadas. Não corremos risco semelhante?
Elisa Machado: sim, corremos esse risco, pois nesses casos o funcionamento das bibliotecas serão regulados única e exclusivamente por um contrato. Na medida em que ele não é cumprido pelo Estado, a empresa encerrará seus serviços. Foi o que aconteceu no Estado do Rio de Janeiro. Por muitos anos as bibliotecas públicas na cidade de São Paulo sofreram com o déficit orçamentário, mas isso não levou ao fechamento de nenhuma unidade. Sabe por quê? Porque as pessoas que estão no comando ou atuando nesses equipamentos são agentes públicos, comprometidos com a sociedade e com a “coisa pública”. Nesse novo cenário não teremos mais o servidor público e sim pessoas contratadas pela empresa gestora. Uma pessoa contratada em regime terceirizado quando do encerramento de seu contrato, por mais consciência que tenha da sua função social numa biblioteca, não tem como agir a favor daquele espaço ou serviço, diferentemente do servidor público.
Foto: Wikicommons
Centro Cultural São Paulo poderá ser gerido por uma entidade privada na gestão de João Dória
Painel Acadêmico – Como outros países gerem equipamentos como as bibliotecas?
Elisa Machado: penso que a maioria das bibliotecas públicas são mantidas e geridas pelos governos locais, mas não conheço pesquisas que possam confirmar isso. Nos EUA, por exemplo, além dos recursos governamentais as bibliotecas públicas contam com a possibilidade as fundações e instituições privadas que repassam recursos por meio de apoio a projetos e programas, tal como temos no Brasil a Fundação de Amparo a Pesquisa de São Paulo (FAPESP), ou a Petrobrás, que por anos apoiou a formação, desenvolvimento e preservação de acervos de bibliotecas, entre outras ações e atividades culturais. Ainda nos EUA é interessante registrar que a tradição de participação da sociedade nas atividades, serviços e espaços oferecidos pelo poder público tem mantido e fortalecido as ações desenvolvidas pelas Associações de Amigo da Biblioteca. Já no Brasil a sociedade não tem a prática da participação instaurada em seu cotidiano, o que dificulta os trabalhos das poucas associações com esse fim. Na América Latina, o país que se destaca com um diferencial na gestão de bibliotecas pública é a Colômbia, que utiliza as Cajas de Compensación Familiar para a gestão de vários espaços e serviços públicos. É o caso de Medellín, Cartagena, entre outras cidades Colombianas. Mas cabe registrar que essa prática não é a única forma adotada no país: por exemplo, a rede de bibliotecas públicas de Bogotá (BibloRed) é gerida pelo governo local por meio da Secretaría de Cultura, Recreación y Deporte de Bogotá.
Painel Acadêmico – A rede de São Paulo é a maior do país. Você poderia contar um pouco a história dela?
Elisa Machado: o Sistema de Bibliotecas Públicas de São Paulo não é só o maior do Brasil, é também o maior da América Latina. É referência em acervos, serviços e espaços. É resultado da fusão do Departamento de Bibliotecas Públicas e do Departamento de Bibliotecas Infanto-Juvenis, ambos criados na década de 1970. Mas, se formos levar em consideração a história das bibliotecas públicas na cidade de São Paulo, é preciso retomar o ano de 1936 quando Mário de Andrade criou a Divisão de Bibliotecas dentro do então Departamento de Cultura. Da década de 1930 até os dias de hoje esse complexo de espaços, serviços e pessoas cresceu e se consolidou na cidade, formando essa grande rede composta por 107 bibliotecas públicas. Passou por momentos áureos e por momentos bem difíceis, como por exemplo durante as gestões de Paulo Maluf e Celso Pita, entre os anos de 1992 a 2000. Mas, a partir de 2001, as gestões subsequentes intensificaram suas ações e retomaram os processos de desenvolvimento e manutenção dos acervos, investiram na reforma e modernização de seus espaços, criaram novos serviços, abriram concurso público para a contratação de bibliotecários, estimularam as alianças com as bibliotecas comunitárias, entre outras ações. Atualmente atende em sua maioria a população que não tem acesso à livrarias, à educação de qualidade e que luta pela sua própria auto formação. Disponibiliza um catálogo online com informações que facilitam a consulta e empréstimo de a toda a população. Oferece uma programação cultural de qualidade e diversificada, sem falar na Biblioteca Mário de Andrade, que nos últimos meses abriu suas portas no horário noturno, atendendo a uma demanda antiga da população. Há de se registrar como histórico também a participação das bibliotecas públicas na construção do Plano Municipal do Livro Leitura e Bibliotecas (PMLLB) instituído pela Lei no. 16.333 de 18 de dezembro de 2015.
Foto: Gabriela Lissa Sakajiri/ BMA
Corredor de vidro da fachada da coleção circulante da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, que no ano passado começou a atender o público também durante a madrugada
Painel Acadêmico – Elas são pouco frequentadas, caras ou mal geridas, quando comparadas com bibliotecas de outros países?
Elisa Machado: não temos estudos comparativos para responder a essa pergunta. Além disso teríamos que comparar países com condições semelhantes, o que não é muito fácil. Não dá para comparar a gestão de bibliotecas no Brasil com a dos EUA, ou da França e Inglaterra. O México é o país que tem as condições econômicas, sociais, populacionais e territoriais mais próximas do Brasil, para fazermos um comparativo no nível nacional. O México tem em torno de 7 mil bibliotecas públicas, enquanto que o Brasil tem em torno de 6 mil. Assim como o Brasil possui um Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas que apoia e desenvolve atividades de formação de pessoal para atuar nesses espaços, portanto, no âmbito nacional vejo muita semelhança entra ambos. No âmbito municipal o Sistema de Bibliotecas de São Paulo é o maior em abrangência, e referência em termos de gestão e de serviços na América Latina. Vale afirmar que uma biblioteca pública não busca lucro e, portanto, sua gestão não pode ser avaliada somente a partir de dados quantitativos. Sem dúvida, como trata-se de recursos públicos, há de se acompanhar o desenvolvimento dos serviços oferecidos, para melhorar e ampliar a frequência e uso desses espaços e acervos, adequando-os as demandas da atualidade. Todos os recursos destinados às bibliotecas públicas devem ser entendidos como investimento na democratização do acesso à leitura, à informação e ao conhecimento. Numa cidade como a de São Paulo, onde temos por volta de 16 mil pessoas morando na rua e um crescente número de pessoas que encontram-se em situação vulnerável, lhes impedindo de ter acesso a boas escolas e a creches, entre outros direitos garantidos pela Constituição, a gestão das bibliotecas deve estar voltadas prioritariamente para atender as demandas de informação, leitura e conhecimento desse público.
Painel Acadêmico – Tem-se a ideia de que a população não frequenta as bibliotecas de São Paulo. Mas em geral quem fala isso vai pouco às bibliotecas. Não se trata de um lugar comum repetido sem uma avaliação objetiva?
Elisa Machado: se isso fosse verdade não estaríamos vendo a abertura de bibliotecas comunitárias pela cidade afora, aquelas criadas e mantidas por coletivos, em sua maioria de jovens e adultos, que buscam uma forma de melhorar sua condição de vida e o acesso a bens culturais, a exemplo das bibliotecas vinculadas ao Polo LiteraSampa. Esse discurso recorrente, criado e difundido por uma elite que não frequenta bibliotecas, justamente para preservar as distâncias entre aqueles que têm daqueles que não têm acesso à informação e à leitura, colabora para difundir uma imagem negativa das bibliotecas públicas, favorecendo o projeto de privatização desse novo governo. A biblioteca pública é um dos espaços mais democráticos que uma cidade pode ter e fundamental em tempos de crise.
Foto: Divulgação
Instalada em 2013 na Cidade de Tiradentes, uma das regiões mais pobres de São Paulo, a Biblioteca Maria Firmina dos Reis é temática e conta com mais de 500 livros de temas ligados aos Direitos Humanos, como direito da mulher, do idoso e da criança
Painel Acadêmico – Há uma manifestação marcada para o dia 25/1 contra a privatização das bibliotecas de São Paulo, com um abraço ao Centro Cultural São Paulo. Como você vê essa reação das pessoas à ideia de privatizar esse patrimônio público?
Elisa Machado: Eu vejo com uma atitude muito positiva o povo se unir para defender um espaço público que é reconhecidamente de qualidade. Nós temos que nos unir e defender o que é nosso. Já perdemos muito nos últimos meses com o governo Temer. Perdemos direitos, perdemos riquezas minerais e, agora, na cidade de São Paulo na gestão Dória, estamos correndo o risco de perder as nossas bibliotecas públicas.
(*) Informação da Rede Brasil Atual.
Disponível em: <http://painelacademico.uol.com.br/espaco-alameda/8362-corremos-o-risco-de-perder-as-nossas-bibliotecas-publicas-diz-professora-da-unirio>. Acesso em: 24 jan. 2017.