A biblioteca do futuro não terá o livro como centro de gravidade, diz Mélanie Archambaud

Bibliotecária francesa responsável pela rede de bibliotecas de Bordeaux fala ao ‘Estado’ sobre sua experiência, o presente e o futuro desses espaços que estão se reinventado e ganhando novos usos

20 Novembro 2017 | 06h00

“É preciso dessacralizar a biblioteca, fazer retornar a dimensão divertida e prazerosa, criar ecos e cruzamentos entre as propostas culturais e documentais para que um adolescente que venha jogar videgame possa, talvez, deixar a biblioteca com o Conde de Monte Cristo.” A opinião é da francesa Mélanie Archambaud, que já trabalhou no Centro de Informação do Centro George Pompidou e é hoje responsável pela cooperação da rede de bibliotecas públicas municipais em Bordeaux.

A biblioteca do presente e do futuro
A biblioteca deverá ser viva, participativa e conectada Foto: Werther Santana

Nesta entrevista concedida por e-mail, ela fala sobre o presente e o futuro das bibliotecas, e sobre o que podemos aprender com os erros e os acertos da experiência desenvolvida na cidade – por exemplo: muitos conteúdos podem ser acessados pelos usuários em casa e desde outubro as bibliotecas ficam abertas até pelo menos 22h, com uma série de atividades para mostrar aos moradores que muita coisa pode acontecer ali dentro.

As bibliotecas públicas que estão sendo mais bem-sucedidas em atrair pessoas são aquelas que se transformaram (ou foram construídas como) uma espécie de centro cultural, onde os usuários podem escolher livros em estantes como se estivessem em livrarias, assistir filmes e, muitas vezes, ter aulas sobre temas tão diferentes como o uso de smartphones para idosos e robótica. Esse é o modelo que sobreviverá? Essa é a biblioteca do futuro? Como será essa biblioteca do futuro?

A sociedade está evoluindo e as bibliotecas devem evoluir com ela. A biblioteca é um local cidadão cujo objetivo principal é permitir o acesso à informação. Ela tem como finalidade a emancipação e construção de indivíduos na sociedade, permitindo-lhes acessar o conhecimento e a informação do modo mais igualitário possível. Durante muito tempo, este acesso à informação foi baseado apenas no acesso a livros e leitura. Mas hoje, o livro compartilha esse papel com novas maneiras de construir, pensar e divulgar informações que se espalham rapidamente e em massa graças às tecnologias de informação e comunicação de baixo custo.

Nesta Sociedade do Conhecimento, a difusão e o uso da informação flui de forma diferente: a cadeia tradicional descendente da transmissão do conhecimento (do que sabe ao que está aprendendo) é totalmente renovada. As bibliotecas não podem negar essa realidade e, em vez disso, devem integrá-la na sua organização. Não se trata de ser tecnológico para ser moderno ou atraente, mas pensar no acesso às informações que correspondam às práticas e realidades de hoje. A clivagem digital é a de todas as desigualdades entre os grupos no sentido amplo, em termos de acesso à informação, uso ou conhecimento das tecnologias da informação e da comunicação. Ao integrar as ferramentas e práticas digitais no exercício de suas missões, as bibliotecas abrem um novo caminho para o mundo da informação e do conhecimento, ao conectar usuários e os conteúdos para além de quaisquer limites geográficos, sociais e culturais.

Não tenho preocupações com a sobrevivência do livro neste novo modelo de bibliotecas, que agora irá coabitar com o digital. Esses dois apoios são complementares e não contraditórios. Eu mencionei anteriormente uma cadeia de conhecimento “totalmente renovada”, o conhecimento é construído cada vez mais horizontalmente e a comunidade com novas tecnologias, nós o vemos com a Wikipedia, por exemplo, mas também o aumento de movimento como o Faça Você mesmo e as práticas amadoras na sociedade. Aqui novamente, a biblioteca deve aceitar esta nova maneira de construir e acessar o conhecimento. O bibliotecário não é mais um transmissor de conhecimento, ele se torna um mediador que deve imaginar modos mais participativos e horizontais de acesso à informação. Os usuários são detentores de conhecimento e estes são recursos potenciais a serem ativados! Podemos construir coisas com eles. Acredito então que a biblioteca do futuro não é nem mais nem menos que uma organização que permanece atenta a essas mudanças sociais e as integra com benevolência sem julgamento. De fato, nada muda nas missões fundamentais das bibliotecas: lembremo-nos que a biblioteca não é um lugar, mas é sobretudo uma organização dotada da missão de democratização do acesso ao conhecimento e à cultura. Nos novos modelos que você cita, as missões não mudam, mas a organização sim. Na minha opinião, uma biblioteca que é apenas digital é tão inadequada como uma biblioteca que só oferece livros. Em ambos os casos, excluem uma parte da sociedade, modos de acesso ao conhecimento e práticas culturais.

O que foi feito em Bordeaux que poderia servir de inspiração a bibliotecas de diferentes lugares, de diferentes realidades?

Não pretendo colocar a biblioteca do Bordeaux como um modelo, mas posso falar sobre o que nos pareceu pertinente como uma ação e experiência e talvez o que tenha funcionado não tão bem. Muitas vezes, acho até mais interessante falar sobre experiências erradas. Penso que conseguimos uma coabitação interessante entre o digital e o livro. Damos acesso gratuito a uma oferta de filmes, documentários, revistas e cursos on-line que as pessoas podem acessar de casa, o que nos permite expandir e complementar nossas coleções físicas. Os usuários deste serviço também são os que tomam livros emprestados, que para eles é uma extensão de nossas coleções de papel. Tudo é gratuito, até wi-fi, como em muitas bibliotecas francesas, razão pela qual temos muitos públicos vulneráveis que vêm à biblioteca para se manter “conectados” à sociedade. O fato de ser capaz de assistir um filme no local, entrar na internet, ter uma conta em Facebook ou participar de um workshop de alfabetização é muito importante para esses públicos em termos de integração na sociedade. As várias oficinas também são uma oportunidade para promover a coesão social.

Acho que a biblioteca de Bordeaux é uma biblioteca muito inclusiva, onde todos os públicos se encontram. Por exemplo, temos um espaço (Espace Diderot) dedicado a pessoas com deficiência com coleções e equipamentos adaptados e funcionários treinados para receber esse público. A rede de Bordeaux tem 9 bibliotecas e o sistema de transporte permite que você empreste e devolva documentos em qualquer estrutura. Em resumo, nós tentamos facilitar e democratizar ao máximo acesso ao conhecimento por esse tipo de dispositivo menos restritivo possível para os usuários. O registro é gratuito (este não é o caso de todas as bibliotecas francesas), temos um intervalo de horas de abertura relativamente grande em comparação com a média francesa e oferecemos formatos e apoios diversificados, bem como uma oferta mediação cultural de forma que todos os públicos possam encontrá-lo. No entanto, sofremos com a imagem que o público faz – muitos ainda veem as bibliotecas como templos sagrados e não se atrevem a chegar até a porta de uma biblioteca.

É por isso que, em 14 de outubro de 2017, a Biblioteca do Bordeaux lançou a primeira Noite das Bibliotecas Metropolitanas: 28 bibliotecas abertas até às 22h ou meia-noite com atividades excepcionais (DJ, teatro, jogos e disputas de perguntas e respostas, workshops participativos, performances , projeções, etc.) para mostrar bibliotecas sob uma luz diferente. Este grande esforço para promover bibliotecas tem sido extremamente bem-sucedido na região, ajudando a mudar a imagem das bibliotecas no inconsciente coletivo.

Também queremos desenvolver uma oferta ao redor do jogo (não apenas o videogame, mas todos os jogos). Eles são verdadeiros vetores de coesão social que precisamos desenvolver. Nós criamos um espaço para videogames na maior biblioteca de rede, mas precisamos repensar esse recurso. Os bibliotecários muitas vezes temem ter o videogame em bibliotecas: medo da confusão, medo de jogos violentos, etc. Então, pensamos em um espaço onde os jogos foram pré-selecionados e oferecidos por um tempo, antes de serem substituídos por novos jogos. Ou isso não faz sentido algum com os costumes das pessoas! Por que tratar o jogo de forma diferente do livro? Por que não confiar nos usuários em vez de usar especificadores? Portanto, vamos relaxar as regras, emprestar nossos videogames e dar aos usuários a opção de jogar o que eles querem.

As bibliotecas públicas ainda não são digitais no Brasil, não há e-books em seus catálogos. Existem apenas alguns modelos de empréstimo/assinatura para universidades e outros para leitores comuns, geralmente associados a empresas de telefonia móvel. Como esta questão é tratada pela sua instituição?

O problema dos e-books na França ultrapassa as bibliotecas e diz respeito a toda a cadeia do livro. Com os e-books, as editoras enfrentam dificuldades legais e técnicas como a revisão dos contratos de direitos autorais ou a reformulação de certas obras para maior interatividade (som, vídeo, zoom …). Mas o principal problema vem do medo do download ilegal. Todos esses motivos explicam a resistência das editoras e sua relutância em oferecer versões digitais de seus livros. Esta realidade editorial tem um impacto direto nas bibliotecas.

Em 2014, apenas 4% das grandes bibliotecas de leitura pública tinham um serviço de empréstimo de e-book apesar da multiplicação de distribuidores (Bibliovox, Lekti, Numilog, Harmatec, etc.), porque a oferta não é muito desenvolvida pelos editores e insatisfatória para as bibliotecas.

Para não prejudicar editores e autores, o Ministério da Cultura francês lançou o programa “Empréstimos digitais em bibliotecas” em 2012, que permite a articulação entre os diferentes atores: editores e transmissores (catálogo de livros); Livrarias (ofertas de distribuidores para comunidade); bibliotecas e usuários. Nesta plataforma, os livros podem ser baixados ou lidos on-line (streaming).

Mas este sistema muito caro para bibliotecas tem limitações: os livros digitais são muito mais caros do que os livros em papel, compramos o acesso e não e-books, o que significa que as bibliotecas não possuem arquivos digitais (daí a questão da durabilidade da coleção), os livros têm travas digitais (Digital Rights Management), que devem proteger os direitos autorais, proibindo um usuário que comprou um produto para poder duplicá-lo e compartilhá-lo. Mas por causa do DRM, um e-book não é compatível com qualquer ferramenta, o que limita seu uso, além do mais no dispositivo atual, um e-book pode ser emprestado simultaneamente, etc. Em suma, é um serviço caro (demais) às bibliotecas por causa da oferta existente e da complexidade do serviço para o usuário. A biblioteca de Bordeaux, como muitas outras bibliotecas, não pode ficar satisfeita com as condições da oferta atual. Hoje, o problema dos bibliotecários é, portanto, resolver as incertezas legais, de modo que as exceções aos direitos autorais para os livros de papel também permitam os empréstimos digitais. No entanto, mais e mais editores confiam nos leitores e oferecem arquivos sem DRM que vão na direção das bibliotecas, o que abre o caminho que esperamos.

O que as bibliotecas públicas brasileiras podem fazer para se preparar para esse novo tipo de leitura? As bibliotecas escolares já deveriam ser digitais?

A introdução do digital nas bibliotecas deve responder a um objetivo específico. Como qualquer projeto em uma biblioteca, isso deve ser acompanhado por um estudo do público-alvo e suas necessidades. Se a leitura digital não corresponde ao uso do público que se deseja alcançar ou não atende a um projeto de desenvolvimento cultural, não tem muito interesse. As bibliotecas não querem ser ativistas digitais, mas apoiar práticas e trazê-las para seu meio.  A questão não tem sentido no absoluto, mas apenas no prisma do que queremos oferecer ao público. O digital não é um objetivo em si, é um meio para desenvolver a leitura e a criatividade, facilitar o acesso à informação, oferecer novas oportunidades para reuniões e intercâmbios entre gerações, entre culturas, entre pessoas simplesmente. A tecnologia digital é simplesmente uma nova maneira de a biblioteca cumprir suas missões, mas deve ser um meio, como a mediação, a ação cultural ou a política documental.

Desde 2014, o governo brasileiro não compra livros de literatura para bibliotecas escolares. Qual é o risco de uma interrupção dessas?

Eu não sabia disso e acho muito inquietante, como se justifica tal decisão? A literatura juvenil é fundamental para acompanhar a construção de indivíduos. Desenvolve o imaginário, permite, naturalmente, o aprendizado da leitura e acompanha a criança em sua evolução, abordando todas as problemáticas que ele atravessa desde jovem. Ao contrário dos livros didáticos, também é através da literatura infantil que as crianças descobrem o prazer da leitura. As bibliotecas e as escolas são, por definição, lugares de acesso ao saber e ao conhecimento, são serviços públicos nos quais o livro em todas as suas formas deve ter seu lugar porque em outras esferas da criança como família, talvez não haja livros. Se for removido das escolas e a criança não vai para a biblioteca ou não lê em casa (trata-se das mesmas crianças), em que momento se dará o encontro com o livro e o prazer de leitura? A dimensão do prazer da leitura deve ser mantida desde uma idade precoce. A leitura não deve ser exclusivamente associada à escola e com a obrigação do aprendizado. Ao retirar a literatura juvenil das bibliotecas escolares, a leitura é reduzida apenas à sua dimensão pedagógica e utilitarista.

As bibliotecas ainda têm um impacto na formação de leitores? O que mais as bibliotecas podem fazer para ajudar a melhorar os índices de leitura?

Não é porque não lemos livros em bibliotecas que não lemos. Existem muitas outras formas de leitura que não são menos válidas do que a leitura de livros. Ler revistas, ler na internet, ler um filme legendado ou ler quadrinhos também são maneiras de ler que você não se deve desprezar. Lembro-me de um jovem migrante que começou a aprender francês jogando videogames na biblioteca, lendo as instruções do jogo na tela e interagindo com outros jogadores. Há também esta biblioteca que criou um espaço “fácil de ler” com textos simples, imagens e conteúdo multimídia para pessoas que não liam ou mal dominavam o francês. Muitas bibliotecas agora estão optando por oferecer uma cultura menos legitimada, com revistas de celebridades, videogames, oficinas de conversação, treinamento de mídia social… Penso que, desde que admitamos que não há boas e más maneiras de ler, as bibliotecas, sem dúvida, continuarão a ser importantes atores no desenvolvimento da leitura. O que importa é caminhar em meio a um máximo de formas e formatos para que as pontes sejam criadas. É preciso dessacralizar a biblioteca, fazer retornar a dimensão divertida e prazerosa, criar ecos e cruzamentos entre as propostas culturais e documentais para que um adolescente que venha jogar videgame possa, talvez, deixar a biblioteca com o Conde de Monte Cristo. Mas se ele não o faz, não importa, ele terá encontrado outra coisa na biblioteca: simpatia, convívio, troca, diversão, inspiração … coisas tão importantes para a sua formação.

Qual é o problema mais urgente para as bibliotecas hoje? Alguma ideia de como resolvê-lo?

O mais urgente (além de ser apoiado financeiramente pelas autoridades públicas) é que as bibliotecas acompanhem a evolução da sociedade. É preciso que os profissionais da biblioteca sejam treinados para a evolução das práticas. Precisamos desenvolver nossas competências de relacionamento, pedagógicas e digitais. O treinamento me parece fundamental para mudar nossa mentalidade e imaginar a biblioteca do amanhã, uma biblioteca participativa, viva e conectada, que não tem mais exclusivamente o livro como centro de gravidade.

Tradução de Claudia Bozzo

Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,a-biblioteca-do-futuro-nao-tera-o-livro-como-centro-de-gravidade-diz-melanie-archambaud,70002090284>. Acesso em: 4 dez. 2017.

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