Big Amazon

CONEXÃO GLOBAL

O GLOBO, 21.07.2009, p. 21 – Economia

NELSON VASCONCELOS

E a simpática Amazon, de quem só costumamos ouvir boas notícias, andou exercitando seu lado Big Brother. Isso porque um parceiro da grande loja pontocom vendeu ilegalmente cópias digitais dos livros “1984” e “Animal farm”, ambos de George Orwell. A Amazon descobriu essa anormalidade graças ao DRM, tecnologia que gerencia os direitos autorais em obras digitais.

Pelo que se constatou, essas edições eletrônicas dos livros de Orwell não poderiam circular nos EUA. Por isso, o DRM “denunciou”, digamos assim, que as tais cópias baixadas através do site eram ilegais.

A tecnologia cumpriu seu papel. De quem foi a responsabilidade pela venda ilegal? Da livraria que vendeu através da Amazon ou desta, que permitiu o negócio sem checar questões relacionadas aos direitos autorais? De qualquer maneira, o que fez, então, a Amazon? Simplesmente entrou remotamente no leitor eletrônico dos seus clientes, o Kindle, e detonou as tais cópias ilegais. Também anunciou que estaria reembolsando US$ 0,99 por livro apagado.

Foram centenas deles. Os clientes começaram a receber comunicado de reembolso na última semana, sem explicação sobre o súbito sumiço dos textos.

Mas o ponto principal é: será que a Amazon tinha o direito de fazer o que fez? Não seria mais ou menos a mesma coisa que uma editora arrombar a porta lá de casa e levar embora todos os livros que comprei em camelôs mundo afora? Ou seria como uma gravadora entrar no meu computador e deletar todas as músicas que eventualmente (oh, que surpresa) andei baixando da internet nos últimos dez anos? Não foram poucas…

A discussão está esquentando nos fóruns especializados — como a ZDNet, onde comecei a capturar essa história, que já se espalha por muitos sites, blogs etc. A ideia geral é de que foi um abuso da Amazon.

Mais do que isso, mostrou que a empresa tem um poder grande sobre seus consumidores. Se, por algum motivo, ela “decidir” que você não deve ler tal livro, ela simplesmente vai apagá-lo do seu Kindle, sem maiores explicações.

Como se comentou em algum dos blogs, isso mostra que você não tem, não possui, de fato, o tal livro no Kindle — a não ser que o transfira para o computador…

Nunca se viu nada parecido.

Por isso, também se levantou a hipótese de livrarias e editoras parceiras começarem a perder confiança na Amazon, e isso seria um péssimo negócio.

O que também é bastante curioso é o fato de tanto ruído ter sido causado justamente a partir da obra do britânico George Orwell (1903-1950).

Para quem andava distraído: a literatura de Orwell é marcada pela discussão de temas políticos, com especial implicância em relação a regimes totalitários, daqueles que vão se metendo na vida particular do cidadão etc.

E foi Orwell quem criou — ou previu? — o Big Brother, o Grande Irmão, que se tornou símbolo da vigilância paranoica sobre os indivíduos.

Nada mais irônico, portanto, que esse episódio da Amazon envolva livros de George Orwell. Se estivesse vivo, ele não hesitaria em declarar algo na linha: — Eu não disse que ia dar nisso?

‘Free’, mas nem tanto

Está programada para sair em agosto, pela Campus, a edição brasileira do livro “Free”, do Chris Anderson, editor-chefe da revista “Wired”.

A polêmica tese do Anderson — já comentada aqui — é basicamente a seguinte: a internet acostumou a gente a acreditar e investir em produtos e serviços gratuitos. E é para esse tipo de consumo confortável que está caminhando boa parte da Humanidade.

Seria a cultura do grátis, ampla, geral e irrestrita.

Anderson prova — ou tenta provar — que se criou uma ideia de que o sistema colaborativo e não remunerado é algo intrinsecamente do bem. Exemplos? O desenvolvimento de software livre, as redes de relacionamento ou a onda blogueira, twitteira etc.

Para os seus participantes, tudo isso se dá sem grandes custos — que não seja o da conexão, claro. E ainda levemos em consideração que o preço da banda larga e o do armazenamento estão caindo, tendendo ao zero.

Todo esse pacote estaria criando uma espécie de socialismo ou socialização do conhecimento — que, por sua vez, é constituído de várias fontes largadas pelo mundo. Muitas delas, gratuitas.

Seria coerente, por isso, compartilhar esse conhecimento de graça.

Naturalmente, essa mudança de comportamento é uma tremenda dor de cabeça para indústrias que sempre sobreviveram porque cobrar era algo legítimo.

Agora, com o tsunami do free querendo invadir quase todas as praias, muita gente está preocupada. É o caso, por exemplo, da própria indústria de informação, cultura e entretenimento. E também da de software.

De fato, é muito difícil querer cobrar por algo que o cliente já tem gratuitamente.

É um nó a ser desfiado em toda a internet.

Quem vai querer pagar por um software de edição de textos, por exemplo, se você o tem gratuitamente via Google — que é a grande referência para esse comportamento? Em contrapartida, criouse, de maneira torta, a impressão de que aquilo que é cobrado não tem legitimidade.

Entra na categoria dos produtos ou serviços que não merecem ser remunerados.

Daí para a pirataria é um pulo…

A discussão vai por aí.

Mas fico curioso em relação ao seguinte: será que Anderson ficaria muito aborrecido com a pirataria de seus livros? Acho que não.

E-mail para esta coluna: nelsonva@oglobo.com.br

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